Imposto seletivo traz complexidade, cumulatividade e inflação
Reforma Tributária
Imposto seletivo traz complexidade, cumulatividade e inflação
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Marcos Cintra e Felipe Reis
No auspicioso contexto da reforma tributária, surge uma insidiosa ameaça a economia brasileira: o chamado imposto seletivo. Proposto pelo governo federal no projeto de lei complementar 68 de 2024, o imposto seletivo (ou IS, como vem sendo chamado) foi originalmente concebido para desencorajar o consumo de produtos nocivos, como cigarros e bebidas alcoólicas. Agora, teve sua abrangência ampliada para englobar também bens minerais essenciais –como petróleo, gás natural e minério de ferro–, com repercussão em toda a sua cadeia produtiva.
Tal expansão da incidência do IS suscita preocupações quanto à sua complexidade e sua abrangência, que parecem contrariar os objetivos centrais da reforma tributária, dentre eles a simplificação. Em especial, há riscos de cumulatividade do imposto. Sem contar os efeitos inflacionários.
É crucial lembrar que a reforma tributária, estabelecida pela emenda constitucional 132 de 2023, fundamenta-se em 3 princípios: simplificar o sistema de cobrança de impostos, evitar a acumulação em cascata de impostos sobre produtos e serviços e aumentar a eficiência na coleta e gestão dos tributos.
A implementação do IS, tal como proposta, desafia esses princípios, exigindo uma análise sobre suas possíveis repercussões econômicas. O PLP 68 de 2024, ao buscar tributar insumos usados na própria atividade produtiva, contraria a intenção de simplificação, por exemplo. Isso ocorreria mesmo quando a cessão do insumo for feita sem ônus, o que poderia complicar ainda mais o sistema tributário. Além disso, o IS incluiria outros impostos e taxas em sua base de cálculo, insistindo na prática de tributar tributos –a notória jabuticaba brasileira, uma peculiaridade nativa que desafia a lógica econômica usual.
Não satisfeita, a proposta interpreta de forma controversa a regra de incidência única de impostos, determinada na Constituição. De acordo com o projeto de lei, essa incidência única seria determinada exclusivamente pela classificação fiscal de cada produto. Isso implica diferentes formas do mesmo recurso natural sendo tributadas separadamente. Por exemplo, tanto o gás natural extraído quanto o GNL (gás natural liquefeito) seriam tributados, assim como o petróleo e o gás natural produzidos de forma associada.
Essa interpretação poderia levar à tributação de várias etapas dentro da mesma cadeia econômica, como se fossem atividades distintas, embora façam parte de um mesmo processo produtivo. Isso contraria o princípio da incidência única de impostos e pode resultar em um aumento da inflação e estímulo a judicialização, além de desestimular um setor já sobrecarregado tributariamente. Segundo a Wood Mackenzie, a carga tributária no setor de petróleo e gás no Brasil varia de 65% a 85%, dependendo do contrato (concessão ou partilha de produção) e do estágio de desenvolvimento do campo.
Ao aumentar o preço final dos derivados de petróleo e gás, como diesel, gasolina e GNV, o IS onerará a cadeia logística do país, afetando setores que dependem do transporte de cargas –agronegócio, mineração, alimentos e bebidas, construção, papel e celulose, petroquímico e varejo–, alguns sobre os quais incidiria o próprio imposto. O aumento nos custos de combustíveis também prejudica categorias socialmente vulneráveis, como caminhoneiros, taxistas, motoristas de aplicativos e motoboys, que têm pouca capacidade de absorver ou repassar esses custos adicionais.
Além disso, a proposta do governo inclui uma medida polêmica: a aplicação do IS sobre as exportações, uma ação proibida pela Constituição. Essa medida poderia desencorajar a venda de produtos brasileiros no mercado internacional, prejudicando a balança comercial e a política cambial do país.
O MME destacou um ponto crucial: cada real adicional arrecadado por meio desse imposto resultaria, na verdade, em uma arrecadação líquida menor para os cofres dos entes federativos. Isso ocorre porque o aumento do imposto reduziria a base de cálculo das participações governamentais, ou seja, Estados e municípios acabariam coletando menos.
A maneira como o IS foi proposto levanta preocupações sobre suas verdadeiras intenções. Sem uma diferenciação adequada de alíquotas e a ausência de medidas compensatórias ou uma análise rigorosa dos impactos, parece que o foco é majoritariamente arrecadatório, em vez de ter um caráter regulatório que poderia orientar comportamentos e práticas de mercado.
A complexidade, a instabilidade regulatória e a falta de transparência do IS, aliadas à sua natureza cumulativa, criam barreiras para investimentos e complicam o planejamento econômico. O PLP 68 de 2024, ao deixar questões cruciais como a base de cálculo e as regras de recolhimento para futura regulamentação pelo Poder Executivo, perpetua a incerteza e dificulta a previsibilidade.
Revisar a regulamentação do IS é imperativo para garantir seu alinhamento com os princípios de simplificação e não cumulatividade, pilares centrais da reforma tributária. Além disso, é crucial que o imposto desempenhe uma função regulatória, desestimulando o consumo de produtos nocivos sem sobrecarregar setores essenciais da economia que dependem desses insumos fundamentais. A reformulação do IS deve promover um ambiente fiscal menos oneroso e mais previsível, criando condições favoráveis para o crescimento sustentável.
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Imposto seletivo traz complexidade, cumulatividade e inflação
Marcos Cintra e Felipe Reis
No auspicioso contexto da reforma tributária, surge uma insidiosa ameaça a economia brasileira: o chamado imposto seletivo. Proposto pelo governo federal no projeto de lei complementar 68 de 2024, o imposto seletivo (ou IS, como vem sendo chamado) foi originalmente concebido para desencorajar o consumo de produtos nocivos, como cigarros e bebidas alcoólicas. Agora, teve sua abrangência ampliada para englobar também bens minerais essenciais –como petróleo, gás natural e minério de ferro–, com repercussão em toda a sua cadeia produtiva.
Tal expansão da incidência do IS suscita preocupações quanto à sua complexidade e sua abrangência, que parecem contrariar os objetivos centrais da reforma tributária, dentre eles a simplificação. Em especial, há riscos de cumulatividade do imposto. Sem contar os efeitos inflacionários.
É crucial lembrar que a reforma tributária, estabelecida pela emenda constitucional 132 de 2023, fundamenta-se em 3 princípios: simplificar o sistema de cobrança de impostos, evitar a acumulação em cascata de impostos sobre produtos e serviços e aumentar a eficiência na coleta e gestão dos tributos.
A implementação do IS, tal como proposta, desafia esses princípios, exigindo uma análise sobre suas possíveis repercussões econômicas. O PLP 68 de 2024, ao buscar tributar insumos usados na própria atividade produtiva, contraria a intenção de simplificação, por exemplo. Isso ocorreria mesmo quando a cessão do insumo for feita sem ônus, o que poderia complicar ainda mais o sistema tributário. Além disso, o IS incluiria outros impostos e taxas em sua base de cálculo, insistindo na prática de tributar tributos –a notória jabuticaba brasileira, uma peculiaridade nativa que desafia a lógica econômica usual.
Não satisfeita, a proposta interpreta de forma controversa a regra de incidência única de impostos, determinada na Constituição. De acordo com o projeto de lei, essa incidência única seria determinada exclusivamente pela classificação fiscal de cada produto. Isso implica diferentes formas do mesmo recurso natural sendo tributadas separadamente. Por exemplo, tanto o gás natural extraído quanto o GNL (gás natural liquefeito) seriam tributados, assim como o petróleo e o gás natural produzidos de forma associada.
Essa interpretação poderia levar à tributação de várias etapas dentro da mesma cadeia econômica, como se fossem atividades distintas, embora façam parte de um mesmo processo produtivo. Isso contraria o princípio da incidência única de impostos e pode resultar em um aumento da inflação e estímulo a judicialização, além de desestimular um setor já sobrecarregado tributariamente. Segundo a Wood Mackenzie, a carga tributária no setor de petróleo e gás no Brasil varia de 65% a 85%, dependendo do contrato (concessão ou partilha de produção) e do estágio de desenvolvimento do campo.
Ao aumentar o preço final dos derivados de petróleo e gás, como diesel, gasolina e GNV, o IS onerará a cadeia logística do país, afetando setores que dependem do transporte de cargas –agronegócio, mineração, alimentos e bebidas, construção, papel e celulose, petroquímico e varejo–, alguns sobre os quais incidiria o próprio imposto. O aumento nos custos de combustíveis também prejudica categorias socialmente vulneráveis, como caminhoneiros, taxistas, motoristas de aplicativos e motoboys, que têm pouca capacidade de absorver ou repassar esses custos adicionais.
Além disso, a proposta do governo inclui uma medida polêmica: a aplicação do IS sobre as exportações, uma ação proibida pela Constituição. Essa medida poderia desencorajar a venda de produtos brasileiros no mercado internacional, prejudicando a balança comercial e a política cambial do país.
O MME destacou um ponto crucial: cada real adicional arrecadado por meio desse imposto resultaria, na verdade, em uma arrecadação líquida menor para os cofres dos entes federativos. Isso ocorre porque o aumento do imposto reduziria a base de cálculo das participações governamentais, ou seja, Estados e municípios acabariam coletando menos.
A maneira como o IS foi proposto levanta preocupações sobre suas verdadeiras intenções. Sem uma diferenciação adequada de alíquotas e a ausência de medidas compensatórias ou uma análise rigorosa dos impactos, parece que o foco é majoritariamente arrecadatório, em vez de ter um caráter regulatório que poderia orientar comportamentos e práticas de mercado.
A complexidade, a instabilidade regulatória e a falta de transparência do IS, aliadas à sua natureza cumulativa, criam barreiras para investimentos e complicam o planejamento econômico. O PLP 68 de 2024, ao deixar questões cruciais como a base de cálculo e as regras de recolhimento para futura regulamentação pelo Poder Executivo, perpetua a incerteza e dificulta a previsibilidade.
Revisar a regulamentação do IS é imperativo para garantir seu alinhamento com os princípios de simplificação e não cumulatividade, pilares centrais da reforma tributária. Além disso, é crucial que o imposto desempenhe uma função regulatória, desestimulando o consumo de produtos nocivos sem sobrecarregar setores essenciais da economia que dependem desses insumos fundamentais. A reformulação do IS deve promover um ambiente fiscal menos oneroso e mais previsível, criando condições favoráveis para o crescimento sustentável.
O imposto seletivo não pode servir para selecionar os vencedores
Felipe Fernandes Reis & Bianca Xavier
A PEC 45/2019, atualmente em análise pelo Senado Federal, é uma das principais iniciativas para resolver o cruel, injusto e delirante Sistema Tributário Brasileiro. Por tais motivos, este artigo não se debruçará nas razões óbvias da necessidade de uma reforma tributária que simplifique, organize e modernize esse Sistema, como em grande parte a PEC 45/2019 o faz. Ademais, é importante registrar a dificuldade da técnica legislativa de reformular um sistema tão complexo como o atual, especialmente à nível constitucional.
Entretanto, a mesma PEC 45/2019 que visa simplificar o sistema atual, propõe emendar a nossa Constituição para instituir o denominado Imposto Seletivo, o qual incidirá sobre produção, comercialização ou importação de bens e serviços[1] “prejudiciais à saúde e ao meio ambiente”. Pela proposta, o referido imposto será regrado por Lei Ordinária. O Poder Executivo, aliás, poderá majorar sua alíquota com bastante flexibilidade, sem observar o princípio da anterioridade nonagesimal e por Decreto.
Conforme o relatório apresentado pela Câmara dos Deputados, o referido imposto “proporcionaria aumento de arrecadação, com baixo custo administrativo, onerando produtos cujo consumo se quisesse desestimular pelos efeitos nocivos à saúde e ao meio ambiente”. Destaca-se, ademais, que foram citadas como benchmarking as experiências europeias, especialmente os arts. 3º e 5º da Diretiva nº 92/12/CEE do Conselho das Comunidades Europeias e o art. 1º da Diretiva nº 2003/96/CE do Conselho da União Europeia.
Contudo, considerando fatores como: (i) a flexibilidade do Poder Executivo para fixar alíquotas; (ii) a mitigação das garantias da anterioridade, e a (iii) imprecisão e abrangência de sua incidência, existem riscos consideráveis do Imposto Seletivo servir não somente para desincentivar o consumo (nesse ponto, deve ser avaliado o grau de elasticidade da demanda desses bens, inclusive) ou compensar eventuais externalidades negativas -uma vez que parte considerável de sua receita já está destinada para outros fins-, mas também para onerar produtores e comercializadores de determinados bens e serviços em benefícios de outros, prejudicando o processo competitivo e os objetivos de isonomia tributária, os quais fundamentaram a reforma e estão consagrados na Constituição Federal (art. 150, II e 170 III).
Dessa forma, é preocupante a previsão da utilização do Imposto Seletivo como ferramenta de competitividade em favor de agentes e operações realizadas em determinadas regiões já beneficiadas (como Zona Franca de Manaus e de outras áreas de livre mercado). Uma vez que, além de não atender as justificativas lançadas para criação desse imposto, isso poderá servir como instrumento e fator de desequilíbrio competitivo, elegendo, assim, o player vencedor.
Nesse sentido, é importante citar o estudo do ICC referente à necessária interação entre a política tributária e defesa da concorrência, para fins de impedir que agentes que atuam no mesmo mercado sejam expostos a regimes diferentes. Vejamos[2]:
‘“A adoção dessas medidas extrafiscais em buscar atingir determinados efeitos sociais deve ser cuidadosamente pensada e adotada com cautela. Fundamentalmente, devem garantir horizontalidade e neutralidade tributária, a fim de não criar assimetrias injustificadas entre produtos que integram o mesmo mercado relevante. Por vezes, percebe-se desvirtuamento na sua aplicação e mesmo desigualdades injustificadas, por exemplo, entre produtos que integram o mesmo mercado relevante e não deveriam usufruir de tratamento diferenciado entre si.”
Note-se que, para alcançar o objetivo de somente desincentivar o consumo e/ou compensar externalidades de determinados produtos e/ou serviços, a PEC 45/2019 deveria limitar a incidência do Imposto Seletivo somente em uma determinada etapa da cadeia, como: no momento final do consumo, ao invés de permitir que fosse aplicado em diferentes elos, como na produção e comercialização do mesmo bem, atendendo, assim, ao princípio da não cumulatividade plena.
Por outro lado, se o escopo do Imposto Seletivo for incentivar o consumo de determinado bem ou serviço, ou promover região específica, isso deveria ser realizado por meio de benefícios e incentivos fiscais, ao invés de majorar os ônus tributários a agentes específicos, sem ao menos considerar outros custos que são aplicados com os mesmos objetivos, como aqueles de natureza regulatória.
Nesse sentido, é importante citar estudo da OCDE a respeito das regras no âmbito da União Europeia envolvendo incentivos e benefícios por parte dos países membros, denominado como “State aid”. No referido estudo, a OCDE fez questão de ressaltar as preocupações da autoridade europeia com distorções concorrenciais, consignando que[3]:
However, a favour in the sense of EU state aid rules is only deemed to have come into existence if it leads (or, at least, has the potential to lead) to a distortion of competition. Aid (in the sense of a selective grant through state resources) distorts competition only if that aid improves the position of the beneficiary or a third party in the applicable market to the detriment of their (potential) competitors. In order to determine whether this applies, it is necessary to compare the competitive situation before and after an (intended) subsidy is compared (ECJ, 1974[17]) (ECJ, 1980[18])12.
No caso do Imposto Seletivo, além da sua abrangência e da mitigação às garantias da legalidade e anterioridade, nota-se também a ausência da previsão de quaisquer mecanismos que limitem a instituição do referido imposto, especialmente por meio de instrumentos de análise prévia de seu impacto e resultado, como AIR e ARR, bem como da necessidade de observar princípios como: isonomia entre contribuintes em situações semelhantes; capacidade contributiva; e a não cumulatividade com outros tributos de natureza e objetivos semelhantes, como é o caso da CIDE e/ou da seletividade da alíquota do IPI e/ou ICMS, bem como com outros fatores de custos (regulatórios, por exemplo) que também tenham o mesmo objetivo do Imposto Seletivo.
Desse modo, para que se alcance as motivações reformistas da simplificação e isonomia tributária, bem como da não cumulatividade, da eficiência e da previsibilidade da carga nos diferentes elos e setores da cadeia econômica, é indispensável que o Senado Federal aperfeiçoe o texto referente ao Imposto Seletivo, de modo a estabelecer limites mínimos para sua incidência e assegurar que o mesmo não servirá para distorções do processo competitivo.
Marcos Cintra
No palco global do ativismo ambiental, o Brasil ensaia um papel de nuances irônicas. Celebrado por sua vastidão amazônica, pela proeminência de seus biocombustíveis e pela fama de sua matriz energética notavelmente limpa, o país se vê à beira de uma condição inusitada: tornar-se importador de créditos de carbono.
Esse cenário peculiar é resultado do comprometimento hesitante dos países desenvolvidos em relação ao mercado de carbono e da propensão nacional em conceber leis que oneram o cidadão e tiram competitividade de nossa economia. É o caso do Projeto de Lei 2.148/15, que cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), já aprovado na Câmara e prestes a ser votado no Senado.
O PL mistura a regulamentação do mercado de carbono no Brasil com negociações climáticas internacionais, tecendo uma conexão equivocada com o Acordo de Paris. Ao dar a impressão de que seria a primeira incursão do país em iniciativas de combate ao aquecimento global, o texto ignora o papel de vanguarda do Brasil na questão climática, que remonta à sua participação fundadora na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), fruto da Eco-92, realizada no Rio.
O Brasil é um líder histórico nessas discussões, criando, já em 1999, uma Autoridade Nacional Designada e ratificando o Protocolo de Quioto em 2002, que originou o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e permitiu a geração e venda de créditos de carbono a nações desenvolvidas. O país colheu benefícios, sobretudo nos governos de Lula (2003 a 2010), quando o MDL prosperou e as Reduções Certificadas de Emissão (RCEs) do Brasil figuraram entre os principais produtos de exportação do país.
Com um investimento unilateral de US$ 25 bilhões em 400 projetos voltados à redução das emissões de CO2, governo e empresas brasileiras abateram anualmente 50 milhões de toneladas de CO2, acumulando diminuição de 450 milhões de toneladas no período de validade dos créditos. O panorama sofreu uma reviravolta em 2013, quando as nações desenvolvidas, lideradas pela União Europeia, mudaram unilateralmente as regras do jogo. Elas proibiram o uso das RCEs provenientes do Brasil, China, Índia, México e Coreia no cumprimento de suas metas de redução de emissões, passando a comprar apenas uma pequena fração dos créditos gerados por essas nações.
Isso desvalorizou as RCEs, que passaram a centavos de dólar por tonelada de CO2. Ou seja, foi uma mudança regulatória, e não lacunas na legislação brasileira sobre mercado de carbono, que secou a demanda internacional. Mesmo com o Acordo de Paris em 2015, esse quadro persiste, com a demanda dos países ricos falhando. Adicionalmente, relatórios da UNFCCC indicam redução das metas dos países desenvolvidos para 2030, o que pode levar a um aumento nas emissões em comparação com 2020, projetando, nesse horizonte, poucas oportunidades para o Brasil no mercado externo de carbono.
Em oposição às nações ricas, que sugerem postergar seus compromissos, o Brasil segue como exemplo. Em 2020, segundo o Balanço Energético Nacional (BEN), cada brasileiro foi responsável por 1,9 toneladas de CO2, contra 12,9 e 7,2 toneladas de um americano ou chinês, respectivamente. Quanto à eficiência, a economia brasileira mostra emissão de 0,13 kg de CO2 por dólar de PIB, alinhando-se à Europa e abaixo da China e dos EUA. No setor energético, o Brasil registrou 1,4 toneladas de CO2 por tonelada equivalente de petróleo de energia oferecida, abaixo dos europeus, americanos e chineses. Na produção de energia elétrica, o país emite uma fração das emissões de seus pares internacionais.
A COP28 acabou sem consenso e um vácuo político emerge na regulamentação das disposições do artigo 6 do Acordo de Paris, determinante para sua eficácia, pois facilita a cooperação global e incentiva investimentos de larga escala. Essa lacuna dificulta a comercialização de créditos de carbono brasileiros no exterior a curto e médio prazos.
No âmbito interno, é crucial ressaltar que metade das emissões do Brasil decorre do desmatamento ilegal. A perspectiva de que os agentes envolvidos nessa prática criminosa venham a adquirir créditos no mercado doméstico é inexistente. Além disso, o projeto exclui o setor agropecuário da obrigação de gerar demanda, o que reduz o leque de atividades econômicas sujeitas às emissões regulamentadas e, assim, mina a capacidade do Brasil de atingir suas metas de redução.
Segundo o PL, só os setores de energia, predominantemente renovável no país, e industrial estarão sujeitos à regulação, embora representem apenas 30% das emissões nacionais. Considerando que as emissões do Brasil constituem menos de 2,7% do total global, o impacto do mercado de carbono brasileiro representará menos de 0,7% das emissões mundiais. Um resultado modesto, alcançado a um ônus social considerável, reverberando em inflação e aumento do Custo Brasil, já que, fatalmente, será repassado ao consumidor, que carregará o peso deste novo “tributo de carbono”, habilmente disfarçado sob o eufemismo de “mercado”.
A estratégia nacional deveria abarcar as complexidades do mercado global de carbono, no qual a lacuna entre o potencial de redução de emissões e seu êxito na comercialização dos créditos é notável. O Brasil viveu isso na pele. Apesar de uma significativa redução no desmatamento, equivalente a 9 bilhões de toneladas de CO2, apenas uma fração, 600 milhões de toneladas, ou 6,7%, encontrou compradores, sobretudo Noruega e Alemanha.
A nova normatização do mercado brasileiro traz um peso adicional aos ombros já cansados do consumidor de energia e sobrecarrega um setor industrial em declínio, sem apresentar redução substancial nas emissões do país, que permanecerão à margem desse sistema. Agravando o quadro, se os níveis de desmatamento crescerem até 2030, o Brasil acumulará uma “dívida ambiental externa” em toneladas de carbono. Num giro quase quixotesco, o país pode se ver navegando em águas internacionais em busca de certificados para honrar seus compromissos sob o Acordo de Paris, ironicamente atuando como um importador de créditos de carbono.
Marcos Cintra
De tempos em tempos, por força de alguma lei natural, surgem causas com poder mobilizador, ímpeto intelectual e força moral para moldar o mundo aos seus próprios valores. É o caso da mudança climática, que contagiou a sociedade com o propósito de combater as emissões de gases causadores de efeito estufa (GEE) através de uma transição energética de hidrocarbonetos para renováveis e eletrificação.
Lastreada no risco real de que o mundo viva uma catástrofe climática, a questão adquiriu dimensão quase religiosa. Após décadas de procrastinação das metas de descarbonização, um raio de fé é bem-vindo, mas há pedras no caminho.
O apagão recente, por exemplo, fez lembrar que uma transição energética é um processo gradual e complexo, arriscado, caro e que abarca muitos fatores ao longo de décadas. Esforços para reduzir a dependência de fósseis estão em curso, mas a velocidade e o êxito da transição dependerão da combinação de elementos técnicos, econômicos, políticos e culturais. E da vontade real dos países de adotar fontes de energia mais sustentáveis.
Nesse quadro, parece procedente refletir sobre a posição do Brasil na transição. Não faz sentido cada país só enxergar seus próprios interesses e marcharmos todos para o suicídio. Mas seria razoável uma nação abrir mão de explorar e produzir suas riquezas enquanto outras obtêm crescimento econômico e segurança energética apostando nas suas?
Quais os efeitos econômicos de desencadearmos uma obsolescência acelerada de ativos? É prudente apostar todas as fichas em tecnologias de energia limpa importadas, que dependem de metais e minerais com oferta limitada ou da qual a produção é dominada por poucos países? Seria aconselhável afastar-se da diversidade energética e arriscar-se incondicionalmente em renováveis que, se desacompanhadas dos atributos da geração firme, tornam o sistema vulnerável a apagões? Ao se voltar contra si próprio e adotar, sem reflexão, soluções externas, o Brasil comete uma espécie de autoimperialismo.
A geração termelétrica, que assegura confiabilidade ao setor elétrico e já o salvou tantas vezes, está sob vivo ataque; o petróleo, que estimula a economia e representou em 2022 13% das nossas exportações, com receitas de US$ 42,6 bilhões, vem sendo embarreirado, caso da Margem Equatorial e do fraturamento hidráulico; o carvão, que responde por 1,7% da geração de energia, foi demonizado. Parcela da sociedade, ignorando que baterias e hidrogênio não estão maduros para armazenamento e fornecimento de energia, desdenham até o gás natural, tido no mundo como o energético de transição.
Embora nossos esforços para reduzir emissões devam seguir firmes e crescentes, tal postura é injustificada no país que fez uma revolução verde e detém a matriz elétrica mais limpa do mundo, 86% renovável. Na matriz energética, ou seja, fontes para movimentar carros, preparar comida e gerar eletricidade, também nos sobressaímos com 55% de fósseis e 44% de renováveis, contra média global de 86% e 12% respectivamente. Como anda a transição no mundo e nos EUA, Europa e China, que concentram mais da metade do consumo global total de energia?
De 1975 a 2020, as renováveis reduziram a dependência global de fósseis de 95% da energia primária para 85%, uma queda de 10% em 45 anos. A transformação das majors de petróleo em companhias de energia e a eletrificação dos veículos projeta, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), um ritmo mais rápido, mas algo a ser conferido, afinal, consumimos hoje três vezes mais carvão que em 1960.
Impulsionados por subsídios, incentivos fiscais, clima político favorável, preferências de rede e vantagem nos financiamentos, os investimentos em renováveis superaram os do upstream de petróleo e gás. Ainda assim, de 70% a 75% do consumo global de energia primária em 2040 será fóssil, aponta a AIE.
Acelerar a descarbonização esbarra em fatores como: 1- penetração lenta de carros elétricos; 2- infraestrutura de transmissão e abastecimento; 3 - morosidade do sequestro geológico de carbono; 4 - demora na eletrificação industrial. O fato de as renováveis serem usadas majoritariamente para gerar eletricidade, cuja parcela do consumo final de energia global é só de 18%, ajuda a manter o uso direto de fósseis como motor do mundo.
Os fósseis são 80% da energia primária dos EUA. A geração de eletricidade a partir de renováveis contribui com apenas 18%. A eletrificação da indústria americana é só de 12% e nos transportes, quase inexistente. Grande parte da redução das emissões de CO2 nos EUA vem da substituição do carvão pelo gás, através da revolução do fra cking, que alterou a geopolítica e fez o país sair da condição de importador para exportador.
Apesar de a China ter eletrificado parcela maior de seu setor industrial que os EUA, a dependência significativa do carvão na geração de energia segue firme. Em relação aos EUA, a China utiliza dez vezes mais carvão do que gás e construiu, em 2020, o equivalente a uma grande usina de carvão por semana, somando três vezes mais capacidade de geração do que todos os países juntos.
A Europa está mais avançada em relação à integração de renováveis e nucleares à rede elétrica e na redução dos fósseis, mas o setor industrial mantém forte dependência dessas fontes. Em 2019 a eletrificação do setor de transportes era de apenas 1%. Apesar das metas ambiciosas, prevalece matriz energética fóssil: 35% petróleo, 24% gás, 17% renováveis, 13% nuclear e 12% carvão. A matriz elétrica é mais limpa: 39,4% de renováveis, 38,7% de fósseis e 21% de nuclear.
Os países se mostram pragmáticos ao aliar aos esforços para descarbonização o reconhecimento do papel das termelétricas a gás, carvão e nuclear e hidráulicas com reservatórios, essenciais até alcançarmos as mudanças comportamentais, políticas e estruturais necessárias para uma descarbonização profunda.
São exemplos que recomendam ao Brasil equilíbrio entre confiabilidade, acessibilidade e sustentabilidade na maneira como gera e usa a energia. A transição mudou estruturalmente o perfil de geração dos sistemas elétricos, mas eles continuam sistemas de potência, dependentes de fontes firmes.
Certa cegueira voluntária e o calor das controvérsias frequentemente solapam a construção de uma visão consensual mínima sobre a transição e o preço de sua realização. Livrar o Brasil do autoimperialismo e fazê-lo integrar crescimento das renováveis, segurança energética e exploração sustentável de suas riquezas parece requerer o restabelecimento da capacidade de coordenação do Estado, pois só se consegue fazer esforços constantes numa direção quando se tem uma visão clara de para onde se vai.
Imposto seletivo traz complexidade, cumulatividade e inflação
Marcos Cintra e Felipe Reis
No auspicioso contexto da reforma tributária, surge uma insidiosa ameaça a economia brasileira: o chamado imposto seletivo. Proposto pelo governo federal no projeto de lei complementar 68 de 2024, o imposto seletivo (ou IS, como vem sendo chamado) foi originalmente concebido para desencorajar o consumo de produtos nocivos, como cigarros e bebidas alcoólicas. Agora, teve sua abrangência ampliada para englobar também bens minerais essenciais –como petróleo, gás natural e minério de ferro–, com repercussão em toda a sua cadeia produtiva.
Tal expansão da incidência do IS suscita preocupações quanto à sua complexidade e sua abrangência, que parecem contrariar os objetivos centrais da reforma tributária, dentre eles a simplificação. Em especial, há riscos de cumulatividade do imposto. Sem contar os efeitos inflacionários.
É crucial lembrar que a reforma tributária, estabelecida pela emenda constitucional 132 de 2023, fundamenta-se em 3 princípios: simplificar o sistema de cobrança de impostos, evitar a acumulação em cascata de impostos sobre produtos e serviços e aumentar a eficiência na coleta e gestão dos tributos.
A implementação do IS, tal como proposta, desafia esses princípios, exigindo uma análise sobre suas possíveis repercussões econômicas. O PLP 68 de 2024, ao buscar tributar insumos usados na própria atividade produtiva, contraria a intenção de simplificação, por exemplo. Isso ocorreria mesmo quando a cessão do insumo for feita sem ônus, o que poderia complicar ainda mais o sistema tributário. Além disso, o IS incluiria outros impostos e taxas em sua base de cálculo, insistindo na prática de tributar tributos –a notória jabuticaba brasileira, uma peculiaridade nativa que desafia a lógica econômica usual.
Não satisfeita, a proposta interpreta de forma controversa a regra de incidência única de impostos, determinada na Constituição. De acordo com o projeto de lei, essa incidência única seria determinada exclusivamente pela classificação fiscal de cada produto. Isso implica diferentes formas do mesmo recurso natural sendo tributadas separadamente. Por exemplo, tanto o gás natural extraído quanto o GNL (gás natural liquefeito) seriam tributados, assim como o petróleo e o gás natural produzidos de forma associada.
Essa interpretação poderia levar à tributação de várias etapas dentro da mesma cadeia econômica, como se fossem atividades distintas, embora façam parte de um mesmo processo produtivo. Isso contraria o princípio da incidência única de impostos e pode resultar em um aumento da inflação e estímulo a judicialização, além de desestimular um setor já sobrecarregado tributariamente. Segundo a Wood Mackenzie, a carga tributária no setor de petróleo e gás no Brasil varia de 65% a 85%, dependendo do contrato (concessão ou partilha de produção) e do estágio de desenvolvimento do campo.
Ao aumentar o preço final dos derivados de petróleo e gás, como diesel, gasolina e GNV, o IS onerará a cadeia logística do país, afetando setores que dependem do transporte de cargas –agronegócio, mineração, alimentos e bebidas, construção, papel e celulose, petroquímico e varejo–, alguns sobre os quais incidiria o próprio imposto. O aumento nos custos de combustíveis também prejudica categorias socialmente vulneráveis, como caminhoneiros, taxistas, motoristas de aplicativos e motoboys, que têm pouca capacidade de absorver ou repassar esses custos adicionais.
Além disso, a proposta do governo inclui uma medida polêmica: a aplicação do IS sobre as exportações, uma ação proibida pela Constituição. Essa medida poderia desencorajar a venda de produtos brasileiros no mercado internacional, prejudicando a balança comercial e a política cambial do país.
O MME destacou um ponto crucial: cada real adicional arrecadado por meio desse imposto resultaria, na verdade, em uma arrecadação líquida menor para os cofres dos entes federativos. Isso ocorre porque o aumento do imposto reduziria a base de cálculo das participações governamentais, ou seja, Estados e municípios acabariam coletando menos.
A maneira como o IS foi proposto levanta preocupações sobre suas verdadeiras intenções. Sem uma diferenciação adequada de alíquotas e a ausência de medidas compensatórias ou uma análise rigorosa dos impactos, parece que o foco é majoritariamente arrecadatório, em vez de ter um caráter regulatório que poderia orientar comportamentos e práticas de mercado.
A complexidade, a instabilidade regulatória e a falta de transparência do IS, aliadas à sua natureza cumulativa, criam barreiras para investimentos e complicam o planejamento econômico. O PLP 68 de 2024, ao deixar questões cruciais como a base de cálculo e as regras de recolhimento para futura regulamentação pelo Poder Executivo, perpetua a incerteza e dificulta a previsibilidade.
Revisar a regulamentação do IS é imperativo para garantir seu alinhamento com os princípios de simplificação e não cumulatividade, pilares centrais da reforma tributária. Além disso, é crucial que o imposto desempenhe uma função regulatória, desestimulando o consumo de produtos nocivos sem sobrecarregar setores essenciais da economia que dependem desses insumos fundamentais. A reformulação do IS deve promover um ambiente fiscal menos oneroso e mais previsível, criando condições favoráveis para o crescimento sustentável.
O imposto seletivo não pode servir para selecionar os vencedores
Felipe Fernandes Reis & Bianca Xavier
A PEC 45/2019, atualmente em análise pelo Senado Federal, é uma das principais iniciativas para resolver o cruel, injusto e delirante Sistema Tributário Brasileiro. Por tais motivos, este artigo não se debruçará nas razões óbvias da necessidade de uma reforma tributária que simplifique, organize e modernize esse Sistema, como em grande parte a PEC 45/2019 o faz. Ademais, é importante registrar a dificuldade da técnica legislativa de reformular um sistema tão complexo como o atual, especialmente à nível constitucional.
Entretanto, a mesma PEC 45/2019 que visa simplificar o sistema atual, propõe emendar a nossa Constituição para instituir o denominado Imposto Seletivo, o qual incidirá sobre produção, comercialização ou importação de bens e serviços[1] “prejudiciais à saúde e ao meio ambiente”. Pela proposta, o referido imposto será regrado por Lei Ordinária. O Poder Executivo, aliás, poderá majorar sua alíquota com bastante flexibilidade, sem observar o princípio da anterioridade nonagesimal e por Decreto.
Conforme o relatório apresentado pela Câmara dos Deputados, o referido imposto “proporcionaria aumento de arrecadação, com baixo custo administrativo, onerando produtos cujo consumo se quisesse desestimular pelos efeitos nocivos à saúde e ao meio ambiente”. Destaca-se, ademais, que foram citadas como benchmarking as experiências europeias, especialmente os arts. 3º e 5º da Diretiva nº 92/12/CEE do Conselho das Comunidades Europeias e o art. 1º da Diretiva nº 2003/96/CE do Conselho da União Europeia.
Contudo, considerando fatores como: (i) a flexibilidade do Poder Executivo para fixar alíquotas; (ii) a mitigação das garantias da anterioridade, e a (iii) imprecisão e abrangência de sua incidência, existem riscos consideráveis do Imposto Seletivo servir não somente para desincentivar o consumo (nesse ponto, deve ser avaliado o grau de elasticidade da demanda desses bens, inclusive) ou compensar eventuais externalidades negativas -uma vez que parte considerável de sua receita já está destinada para outros fins-, mas também para onerar produtores e comercializadores de determinados bens e serviços em benefícios de outros, prejudicando o processo competitivo e os objetivos de isonomia tributária, os quais fundamentaram a reforma e estão consagrados na Constituição Federal (art. 150, II e 170 III).
Dessa forma, é preocupante a previsão da utilização do Imposto Seletivo como ferramenta de competitividade em favor de agentes e operações realizadas em determinadas regiões já beneficiadas (como Zona Franca de Manaus e de outras áreas de livre mercado). Uma vez que, além de não atender as justificativas lançadas para criação desse imposto, isso poderá servir como instrumento e fator de desequilíbrio competitivo, elegendo, assim, o player vencedor.
Nesse sentido, é importante citar o estudo do ICC referente à necessária interação entre a política tributária e defesa da concorrência, para fins de impedir que agentes que atuam no mesmo mercado sejam expostos a regimes diferentes. Vejamos[2]:
‘“A adoção dessas medidas extrafiscais em buscar atingir determinados efeitos sociais deve ser cuidadosamente pensada e adotada com cautela. Fundamentalmente, devem garantir horizontalidade e neutralidade tributária, a fim de não criar assimetrias injustificadas entre produtos que integram o mesmo mercado relevante. Por vezes, percebe-se desvirtuamento na sua aplicação e mesmo desigualdades injustificadas, por exemplo, entre produtos que integram o mesmo mercado relevante e não deveriam usufruir de tratamento diferenciado entre si.”
Note-se que, para alcançar o objetivo de somente desincentivar o consumo e/ou compensar externalidades de determinados produtos e/ou serviços, a PEC 45/2019 deveria limitar a incidência do Imposto Seletivo somente em uma determinada etapa da cadeia, como: no momento final do consumo, ao invés de permitir que fosse aplicado em diferentes elos, como na produção e comercialização do mesmo bem, atendendo, assim, ao princípio da não cumulatividade plena.
Por outro lado, se o escopo do Imposto Seletivo for incentivar o consumo de determinado bem ou serviço, ou promover região específica, isso deveria ser realizado por meio de benefícios e incentivos fiscais, ao invés de majorar os ônus tributários a agentes específicos, sem ao menos considerar outros custos que são aplicados com os mesmos objetivos, como aqueles de natureza regulatória.
Nesse sentido, é importante citar estudo da OCDE a respeito das regras no âmbito da União Europeia envolvendo incentivos e benefícios por parte dos países membros, denominado como “State aid”. No referido estudo, a OCDE fez questão de ressaltar as preocupações da autoridade europeia com distorções concorrenciais, consignando que[3]:
However, a favour in the sense of EU state aid rules is only deemed to have come into existence if it leads (or, at least, has the potential to lead) to a distortion of competition. Aid (in the sense of a selective grant through state resources) distorts competition only if that aid improves the position of the beneficiary or a third party in the applicable market to the detriment of their (potential) competitors. In order to determine whether this applies, it is necessary to compare the competitive situation before and after an (intended) subsidy is compared (ECJ, 1974[17]) (ECJ, 1980[18])12.
No caso do Imposto Seletivo, além da sua abrangência e da mitigação às garantias da legalidade e anterioridade, nota-se também a ausência da previsão de quaisquer mecanismos que limitem a instituição do referido imposto, especialmente por meio de instrumentos de análise prévia de seu impacto e resultado, como AIR e ARR, bem como da necessidade de observar princípios como: isonomia entre contribuintes em situações semelhantes; capacidade contributiva; e a não cumulatividade com outros tributos de natureza e objetivos semelhantes, como é o caso da CIDE e/ou da seletividade da alíquota do IPI e/ou ICMS, bem como com outros fatores de custos (regulatórios, por exemplo) que também tenham o mesmo objetivo do Imposto Seletivo.
Desse modo, para que se alcance as motivações reformistas da simplificação e isonomia tributária, bem como da não cumulatividade, da eficiência e da previsibilidade da carga nos diferentes elos e setores da cadeia econômica, é indispensável que o Senado Federal aperfeiçoe o texto referente ao Imposto Seletivo, de modo a estabelecer limites mínimos para sua incidência e assegurar que o mesmo não servirá para distorções do processo competitivo.
Marcos Cintra
No palco global do ativismo ambiental, o Brasil ensaia um papel de nuances irônicas. Celebrado por sua vastidão amazônica, pela proeminência de seus biocombustíveis e pela fama de sua matriz energética notavelmente limpa, o país se vê à beira de uma condição inusitada: tornar-se importador de créditos de carbono.
Esse cenário peculiar é resultado do comprometimento hesitante dos países desenvolvidos em relação ao mercado de carbono e da propensão nacional em conceber leis que oneram o cidadão e tiram competitividade de nossa economia. É o caso do Projeto de Lei 2.148/15, que cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), já aprovado na Câmara e prestes a ser votado no Senado.
O PL mistura a regulamentação do mercado de carbono no Brasil com negociações climáticas internacionais, tecendo uma conexão equivocada com o Acordo de Paris. Ao dar a impressão de que seria a primeira incursão do país em iniciativas de combate ao aquecimento global, o texto ignora o papel de vanguarda do Brasil na questão climática, que remonta à sua participação fundadora na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), fruto da Eco-92, realizada no Rio.
O Brasil é um líder histórico nessas discussões, criando, já em 1999, uma Autoridade Nacional Designada e ratificando o Protocolo de Quioto em 2002, que originou o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e permitiu a geração e venda de créditos de carbono a nações desenvolvidas. O país colheu benefícios, sobretudo nos governos de Lula (2003 a 2010), quando o MDL prosperou e as Reduções Certificadas de Emissão (RCEs) do Brasil figuraram entre os principais produtos de exportação do país.
Com um investimento unilateral de US$ 25 bilhões em 400 projetos voltados à redução das emissões de CO2, governo e empresas brasileiras abateram anualmente 50 milhões de toneladas de CO2, acumulando diminuição de 450 milhões de toneladas no período de validade dos créditos. O panorama sofreu uma reviravolta em 2013, quando as nações desenvolvidas, lideradas pela União Europeia, mudaram unilateralmente as regras do jogo. Elas proibiram o uso das RCEs provenientes do Brasil, China, Índia, México e Coreia no cumprimento de suas metas de redução de emissões, passando a comprar apenas uma pequena fração dos créditos gerados por essas nações.
Isso desvalorizou as RCEs, que passaram a centavos de dólar por tonelada de CO2. Ou seja, foi uma mudança regulatória, e não lacunas na legislação brasileira sobre mercado de carbono, que secou a demanda internacional. Mesmo com o Acordo de Paris em 2015, esse quadro persiste, com a demanda dos países ricos falhando. Adicionalmente, relatórios da UNFCCC indicam redução das metas dos países desenvolvidos para 2030, o que pode levar a um aumento nas emissões em comparação com 2020, projetando, nesse horizonte, poucas oportunidades para o Brasil no mercado externo de carbono.
Em oposição às nações ricas, que sugerem postergar seus compromissos, o Brasil segue como exemplo. Em 2020, segundo o Balanço Energético Nacional (BEN), cada brasileiro foi responsável por 1,9 toneladas de CO2, contra 12,9 e 7,2 toneladas de um americano ou chinês, respectivamente. Quanto à eficiência, a economia brasileira mostra emissão de 0,13 kg de CO2 por dólar de PIB, alinhando-se à Europa e abaixo da China e dos EUA. No setor energético, o Brasil registrou 1,4 toneladas de CO2 por tonelada equivalente de petróleo de energia oferecida, abaixo dos europeus, americanos e chineses. Na produção de energia elétrica, o país emite uma fração das emissões de seus pares internacionais.
A COP28 acabou sem consenso e um vácuo político emerge na regulamentação das disposições do artigo 6 do Acordo de Paris, determinante para sua eficácia, pois facilita a cooperação global e incentiva investimentos de larga escala. Essa lacuna dificulta a comercialização de créditos de carbono brasileiros no exterior a curto e médio prazos.
No âmbito interno, é crucial ressaltar que metade das emissões do Brasil decorre do desmatamento ilegal. A perspectiva de que os agentes envolvidos nessa prática criminosa venham a adquirir créditos no mercado doméstico é inexistente. Além disso, o projeto exclui o setor agropecuário da obrigação de gerar demanda, o que reduz o leque de atividades econômicas sujeitas às emissões regulamentadas e, assim, mina a capacidade do Brasil de atingir suas metas de redução.
Segundo o PL, só os setores de energia, predominantemente renovável no país, e industrial estarão sujeitos à regulação, embora representem apenas 30% das emissões nacionais. Considerando que as emissões do Brasil constituem menos de 2,7% do total global, o impacto do mercado de carbono brasileiro representará menos de 0,7% das emissões mundiais. Um resultado modesto, alcançado a um ônus social considerável, reverberando em inflação e aumento do Custo Brasil, já que, fatalmente, será repassado ao consumidor, que carregará o peso deste novo “tributo de carbono”, habilmente disfarçado sob o eufemismo de “mercado”.
A estratégia nacional deveria abarcar as complexidades do mercado global de carbono, no qual a lacuna entre o potencial de redução de emissões e seu êxito na comercialização dos créditos é notável. O Brasil viveu isso na pele. Apesar de uma significativa redução no desmatamento, equivalente a 9 bilhões de toneladas de CO2, apenas uma fração, 600 milhões de toneladas, ou 6,7%, encontrou compradores, sobretudo Noruega e Alemanha.
A nova normatização do mercado brasileiro traz um peso adicional aos ombros já cansados do consumidor de energia e sobrecarrega um setor industrial em declínio, sem apresentar redução substancial nas emissões do país, que permanecerão à margem desse sistema. Agravando o quadro, se os níveis de desmatamento crescerem até 2030, o Brasil acumulará uma “dívida ambiental externa” em toneladas de carbono. Num giro quase quixotesco, o país pode se ver navegando em águas internacionais em busca de certificados para honrar seus compromissos sob o Acordo de Paris, ironicamente atuando como um importador de créditos de carbono.
Marcos Cintra
De tempos em tempos, por força de alguma lei natural, surgem causas com poder mobilizador, ímpeto intelectual e força moral para moldar o mundo aos seus próprios valores. É o caso da mudança climática, que contagiou a sociedade com o propósito de combater as emissões de gases causadores de efeito estufa (GEE) através de uma transição energética de hidrocarbonetos para renováveis e eletrificação.
Lastreada no risco real de que o mundo viva uma catástrofe climática, a questão adquiriu dimensão quase religiosa. Após décadas de procrastinação das metas de descarbonização, um raio de fé é bem-vindo, mas há pedras no caminho.
O apagão recente, por exemplo, fez lembrar que uma transição energética é um processo gradual e complexo, arriscado, caro e que abarca muitos fatores ao longo de décadas. Esforços para reduzir a dependência de fósseis estão em curso, mas a velocidade e o êxito da transição dependerão da combinação de elementos técnicos, econômicos, políticos e culturais. E da vontade real dos países de adotar fontes de energia mais sustentáveis.
Nesse quadro, parece procedente refletir sobre a posição do Brasil na transição. Não faz sentido cada país só enxergar seus próprios interesses e marcharmos todos para o suicídio. Mas seria razoável uma nação abrir mão de explorar e produzir suas riquezas enquanto outras obtêm crescimento econômico e segurança energética apostando nas suas?
Quais os efeitos econômicos de desencadearmos uma obsolescência acelerada de ativos? É prudente apostar todas as fichas em tecnologias de energia limpa importadas, que dependem de metais e minerais com oferta limitada ou da qual a produção é dominada por poucos países? Seria aconselhável afastar-se da diversidade energética e arriscar-se incondicionalmente em renováveis que, se desacompanhadas dos atributos da geração firme, tornam o sistema vulnerável a apagões? Ao se voltar contra si próprio e adotar, sem reflexão, soluções externas, o Brasil comete uma espécie de autoimperialismo.
A geração termelétrica, que assegura confiabilidade ao setor elétrico e já o salvou tantas vezes, está sob vivo ataque; o petróleo, que estimula a economia e representou em 2022 13% das nossas exportações, com receitas de US$ 42,6 bilhões, vem sendo embarreirado, caso da Margem Equatorial e do fraturamento hidráulico; o carvão, que responde por 1,7% da geração de energia, foi demonizado. Parcela da sociedade, ignorando que baterias e hidrogênio não estão maduros para armazenamento e fornecimento de energia, desdenham até o gás natural, tido no mundo como o energético de transição.
Embora nossos esforços para reduzir emissões devam seguir firmes e crescentes, tal postura é injustificada no país que fez uma revolução verde e detém a matriz elétrica mais limpa do mundo, 86% renovável. Na matriz energética, ou seja, fontes para movimentar carros, preparar comida e gerar eletricidade, também nos sobressaímos com 55% de fósseis e 44% de renováveis, contra média global de 86% e 12% respectivamente. Como anda a transição no mundo e nos EUA, Europa e China, que concentram mais da metade do consumo global total de energia?
De 1975 a 2020, as renováveis reduziram a dependência global de fósseis de 95% da energia primária para 85%, uma queda de 10% em 45 anos. A transformação das majors de petróleo em companhias de energia e a eletrificação dos veículos projeta, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), um ritmo mais rápido, mas algo a ser conferido, afinal, consumimos hoje três vezes mais carvão que em 1960.
Impulsionados por subsídios, incentivos fiscais, clima político favorável, preferências de rede e vantagem nos financiamentos, os investimentos em renováveis superaram os do upstream de petróleo e gás. Ainda assim, de 70% a 75% do consumo global de energia primária em 2040 será fóssil, aponta a AIE.
Acelerar a descarbonização esbarra em fatores como: 1- penetração lenta de carros elétricos; 2- infraestrutura de transmissão e abastecimento; 3 - morosidade do sequestro geológico de carbono; 4 - demora na eletrificação industrial. O fato de as renováveis serem usadas majoritariamente para gerar eletricidade, cuja parcela do consumo final de energia global é só de 18%, ajuda a manter o uso direto de fósseis como motor do mundo.
Os fósseis são 80% da energia primária dos EUA. A geração de eletricidade a partir de renováveis contribui com apenas 18%. A eletrificação da indústria americana é só de 12% e nos transportes, quase inexistente. Grande parte da redução das emissões de CO2 nos EUA vem da substituição do carvão pelo gás, através da revolução do fra cking, que alterou a geopolítica e fez o país sair da condição de importador para exportador.
Apesar de a China ter eletrificado parcela maior de seu setor industrial que os EUA, a dependência significativa do carvão na geração de energia segue firme. Em relação aos EUA, a China utiliza dez vezes mais carvão do que gás e construiu, em 2020, o equivalente a uma grande usina de carvão por semana, somando três vezes mais capacidade de geração do que todos os países juntos.
A Europa está mais avançada em relação à integração de renováveis e nucleares à rede elétrica e na redução dos fósseis, mas o setor industrial mantém forte dependência dessas fontes. Em 2019 a eletrificação do setor de transportes era de apenas 1%. Apesar das metas ambiciosas, prevalece matriz energética fóssil: 35% petróleo, 24% gás, 17% renováveis, 13% nuclear e 12% carvão. A matriz elétrica é mais limpa: 39,4% de renováveis, 38,7% de fósseis e 21% de nuclear.
Os países se mostram pragmáticos ao aliar aos esforços para descarbonização o reconhecimento do papel das termelétricas a gás, carvão e nuclear e hidráulicas com reservatórios, essenciais até alcançarmos as mudanças comportamentais, políticas e estruturais necessárias para uma descarbonização profunda.
São exemplos que recomendam ao Brasil equilíbrio entre confiabilidade, acessibilidade e sustentabilidade na maneira como gera e usa a energia. A transição mudou estruturalmente o perfil de geração dos sistemas elétricos, mas eles continuam sistemas de potência, dependentes de fontes firmes.
Certa cegueira voluntária e o calor das controvérsias frequentemente solapam a construção de uma visão consensual mínima sobre a transição e o preço de sua realização. Livrar o Brasil do autoimperialismo e fazê-lo integrar crescimento das renováveis, segurança energética e exploração sustentável de suas riquezas parece requerer o restabelecimento da capacidade de coordenação do Estado, pois só se consegue fazer esforços constantes numa direção quando se tem uma visão clara de para onde se vai.